segunda-feira, 7 de julho de 2008

Artigo - de Rizzatto Nunes

A lei seca e direito de locomoção de todos nós


Dou hoje minha opinião, que será estritamente jurídica sobre a atual lei seca que está dando o que falar. Deixo claro desde logo que sinto-me bastante à vontade para tratar do assunto do modo como farei, porque na minha coluna de 04 de fevereiro deste ano, tinha elogiado a posição do Governo Federal em proibir a venda de bebidas alcoólicas à beira das estradas, como continuo acreditando que é preciso ir além: penso que de deve proibir a venda desse tipo de bebida em supermercados, permitindo a venda apenas em locais específicos e autorizados em que só entrem maiores de idade; penso também que deve ser proibida toda publicidade de bebidas alcoólicas etc. O Estado deve mesmo fazer algo, mas sempre respeitando as garantias constitucionais de um verdadeiro Estado de Direito.

Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil. A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a Constituição Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel. Muito bem. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de direito já há 33 anos fico triste e até, diria, um pouco descorçoado.

É incrível como o Poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo. As ações policiais, por exemplo, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.

Veja o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra os cidadãos de bem. A pessoa é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque acabou de sair de um restaurante. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem. Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas porque está passando naquele local naquele momento. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É assombroso, para dizer o mínimo.

De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho?

Dou exemplo de quando é possível a abordagem: se a pessoa entra cambaleando num veículo para dirigi-lo, eis o dado objetivo. Nesse caso o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou se o veículo faz zigue-zague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.

Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordado e nem se lhe pode impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Eu digo isso, apenas e tão somente porque as leis não estão sendo cumpridas. Vamos a elas, então.

Em primeiro lugar, leia a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB): "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando.

O Professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo. Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal ("sob influência de qualquer outra substância...") deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva "ou" remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.

Dou também outra razão: a própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: "Art. 4º-A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção." (grifei)

Pergunto: o que significa "estar sob influência"? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo. No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em zigue-zague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.

E, em reforço lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: "dirigir sob influência do álcool". Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constata influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.

Pergunto agora: Pode a polícia parar o veículo e submeter toda e qualquer pessoa ao exame do bafômetro? A resposta é não e por vários motivos. Primeiro, porque para abordar qualquer cidadão é preciso lei que autorize ou dado objetivo que permita. O direito de locomover-se livremente é assegurado constitucionalmente (Art. 5º, XV, CF). Segundo, porque ainda que o motorista tenha ingerido álcool, isso não basta, pois deve se poder constatar um fato objetivo que gere perigo concreto, real decorrente de sua influência. Terceiro, porque ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo. Se em algum caso, puder se constatar a influência do álcool por elementos exteriorizados objetivamente, então, nesse caso, a prisão há de ser feita com base em testemunhas e não mera suspeita infundada do policial ou por ordem direta de seus superiores que criaram uma suspeita em abstrato e geral.


Porém, digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode se dar outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09 de dezembro de 1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, "a" e "i"). É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram, as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro "Abuso de Autoridade" (Publicado pela Editora Revista do Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).

Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso. No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação à quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordem superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.

De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que "sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente, seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados" (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).

O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados. Em comum a violência e o abandono. Afora o fato de que esse tipo de blitz acaba deixando um rastro. Quando elas cessarem, porque cessarão, deixarão no ar a possibilidade da ilegal abordagem de quem quer que seja e, nesse momento, os policiais menos escrupulosos aproveitarão para "engordar o caixa". Mais um procedimento que facilita a corrupção. Outra coisa para se lamentar.

Não posso, como professor de Direito, depois de quase trinta anos de magistério, ficar tranqüilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, o que assisto todo dia e cada vez mais é uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.


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Rizzatto Nunes é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP. É desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Autor de diversos livros, lançou recentemente o "Bê-a-bá do Consumidor" (Editora Método). Coordena um site voltado ao Direito do Consumidor e à Defesa da Cidadania.

2 comentários:

Thiago Duwe disse...

Me chama a atenção no artigo um certo paroxismo: o autor inicialmente condena a venda de bebidas em lugares que não sejam específicos para tal fim. Depois arrola comentários defendendo a liberdade de ir e vir do cidadão, mesmo que este tenha bebido algumas. Ademais disso, concordo com o arroubo autoritário praticado pela grande maioria da polícia. Realmente, o que um cidadão de bem que com sua família vai a restaurante, tem a ver com o piazão que vai a balada e enche a cara?? Sabemos como são os fatos. Parabéns pela argumentação estritamente jurídica, a externalidade aparente do consumidor de álcool é o fato que deve ser levado em consideração. O resto é só terrorismo com o cidadão. Pena que parece que só resta isso ao Estado. Contemos com a educação que levará ao bom senso de que falei no último comentário.


Thiago Duwe.

Cláudia I, Vetter disse...

OLá Fabrício!

Fujo do assunto a comentar para dizer-lhe apenas que aprecio teus poemas publicados no Concreta Mente Abstrata; li-o a pouco tempo e gestei de tuas percepções.
De Blumenau também sou, e creio que posso reconhecer a importância da literatura de boa qualidade.

Vida longa!